quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012
Quaresma: Papa pede atenção (concreta) aos necessitados
Mensagem de Bento XVI alerta contra indiferença e desinteresse face ao sofrimento alheio
Cidade do Vaticano, 22 fev 2012 (Ecclesia) - A mensagem de Bento XVI para a Quaresma, que hoje se inicia, pede aos católicos de todo o mundo que façam deste tempo uma oportunidade para “prestar atenção ao outro”, com “preocupação concreta pelos mais pobres”. “Uma sociedade como a atual pode tornar-se surda, quer aos sofrimentos físicos, quer às exigências espirituais e morais da vida. Não deve ser assim na comunidade cristã”, refere o texto, divulgado pela Santa Sé. O Papa critica “a indiferença” e “o desinteresse que nascem do egoísmo, mascarado por uma aparência de respeito pela ‘esfera privada’” na cultura atual, atitudes que quer ver contrariadas por um “olhar de fraternidade”. “O grande mandamento do amor ao próximo exige e incita a consciência a sentir-se responsável por quem, como eu, é criatura e filho de Deus: o facto de sermos irmãos em humanidade e, em muitos casos, também na fé deve levar-nos a ver no outro um verdadeiro ‘alter ego’, infinitamente amado pelo Senhor”, pode ler-se. O documento, com versão em português, intitula-se ‘Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras’, expressão retirada da Carta aos Hebreus, do Novo Testamento. Bento XVI alerta para o perigo de “uma espécie de ‘anestesia espiritual’”, que impede de atender ao sofrimento alheio com um “olhar feito de humanidade e de carinho”. “O nosso coração nunca deve estar tão absorvido pelas nossas coisas e problemas que fique surdo ao brado do pobre”, observa. Recordando o episódio bíblico [livro do Génesis] em que Deus interpela Caim, a respeito do assassinato do seu irmão Abel, a mensagem papal incita a consciência de cada pessoa a sentir-se responsável por quem é “criatura e filho de Deus”: “Também hoje Deus nos pede para sermos o ‘guarda’ dos nossos irmãos”. “O facto de sermos o ‘guarda’ dos outros contrasta com uma mentalidade que, reduzindo a vida unicamente à dimensão terrena, deixa de a considerar na sua perspetiva escatológica e aceita qualquer opção moral em nome da liberdade individual”, precisa. Bento XVI diz que a cultura contemporânea parece ter perdido “o sentido do bem e do mal”, sendo necessário “reafirmar com vigor que o bem existe e vence”. “O bem é aquilo que suscita, protege e promove a vida, a fraternidade e a comunhão. Assim a responsabilidade pelo próximo significa querer e favorecer o bem do outro, desejando que também ele se abra à lógica do bem”, assinala. Esse bem, acrescenta, inclui a chamada “correção fraterna”, numa “responsabilidade espiritual pelos irmãos”. “A tradição da Igreja enumera entre as obras espirituais de misericórdia a de ‘corrigir os que erram’. É importante recuperar esta dimensão do amor cristão”, escreve o Papa. A mensagem de Bento XVI diz que os católicos não devem “ficar calados diante do mal” e lamenta que alguns prefiram, “por respeito humano ou mera comodidade, adequar-se à mentalidade comum”. “A nossa existência está ligada com a dos outros, quer no bem quer no mal; tanto o pecado como as obras de amor possuem também uma dimensão social”, prossegue. A Quaresma é um período de 40 dias - excetuando os domingos -, marcado por apelos ao jejum, partilha e penitência, que serve de preparação para a Páscoa, a principal festa do calendário dos cristãos. Fonte: Agência Ecclesia http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?tpl&id=89444 |
Carta do Santo Padre - Bento XVI
«Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às
boas obras»
(Heb 10, 24)
Irmãos e irmãs!
A Quaresma oferece-nos a oportunidade de reflectir mais uma vez sobre o cerne
da vida cristã: o amor. Com efeito este é um tempo propício para renovarmos,
com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho pessoal e
comunitário de fé. Trata-se de um percurso marcado pela oração e a partilha,
pelo silêncio e o jejum, com a esperança de viver a alegria pascal.
Desejo, este ano, propor alguns pensamentos inspirados num breve texto
bíblico tirado da Carta aos Hebreus: «Prestemos atenção uns aos
outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras» (10, 24). Esta frase
aparece inserida numa passagem onde o escritor sagrado exorta a ter confiança
em Jesus Cristo como Sumo Sacerdote, que nos obteve o perdão e o acesso a Deus.
O fruto do acolhimento de Cristo é uma vida edificada segundo as três virtudes
teologais: trata-se de nos aproximarmos do Senhor «com um coração sincero,
com a plena segurança da fé» (v. 22), de conservarmos firmemente «a
profissão da nossa esperança» (v. 23), numa solicitude constante por
praticar, juntamente com os irmãos, «o amor e as boas obras» (v. 24).
Na passagem em questão afirma-se também que é importante, para apoiar esta
conduta evangélica, participar nos encontros litúrgicos e na oração da
comunidade, com os olhos fixos na meta escatológica: a plena comunhão em Deus
(v. 25). Detenho-me no versículo 24, que, em poucas palavras, oferece um
ensinamento precioso e sempre actual sobre três aspectos da vida cristã:
prestar atenção ao outro, a reciprocidade e a santidade pessoal.
1. «Prestemos atenção»: a responsabilidade pelo irmão.
O primeiro elemento é o convite a «prestar atenção»: o verbo grego usado
é katanoein, que significa observar bem, estar atento, olhar
conscienciosamente, dar-se conta de uma realidade. Encontramo-lo no Evangelho,
quando Jesus convida os discípulos a «observar» as aves do céu, que não se
preocupam com o alimento e todavia são objecto de solícita e cuidadosa
Providência divina (cf. Lc 12, 24), e a «dar-se conta» da trave que
têm na própria vista antes de reparar no argueiro que está na vista do irmão
(cf. Lc 6, 41). Encontramos o referido verbo também noutro trecho da
mesma Carta aos Hebreus, quando convida a «considerar Jesus» (3, 1)
como o Apóstolo e o Sumo Sacerdote da nossa fé. Por conseguinte o verbo, que
aparece na abertura da nossa exortação, convida a fixar o olhar no outro, a
começar por Jesus, e a estar atentos uns aos outros, a não se mostrar alheio e
indiferente ao destino dos irmãos. Mas, com frequência, prevalece a atitude
contrária: a indiferença, o desinteresse, que nascem do egoísmo, mascarado
por uma aparência de respeito pela «esfera privada». Também hoje ressoa, com
vigor, a voz do Senhor que chama cada um de nós a cuidar do outro. Também hoje
Deus nos pede para sermos o «guarda» dos nossos irmãos (cf. Gn 4, 9),
para estabelecermos relações caracterizadas por recíproca solicitude, pela
atenção ao bem do outro e a todo o seu bem. O grande mandamento
do amor ao próximo exige e incita a consciência a sentir-se responsável por
quem, como eu, é criatura e filho de Deus: o facto de sermos irmãos em
humanidade e, em muitos casos, também na fé deve levar-nos a ver no outro um
verdadeiro alter ego, infinitamente amado pelo Senhor. Se cultivarmos
este olhar de fraternidade, brotarão naturalmente do nosso coração a
solidariedade, a justiça, bem como a misericórdia e a compaixão. O Servo de
Deus Paulo VI afirmava que o mundo actual sofre sobretudo de falta de
fraternidade: «O mundo está doente. O seu mal reside mais na crise de
fraternidade entre os homens e entre os povos, do que na esterilização ou no
monopólio, que alguns fazem, dos recursos do universo» (Carta enc. Populorum
progressio, 66).
A atenção ao outro inclui que se deseje, para ele ou para ela, o bem sob
todos os seus aspectos: físico, moral e espiritual. Parece que a cultura
contemporânea perdeu o sentido do bem e do mal, sendo necessário reafirmar com
vigor que o bem existe e vence, porque Deus é «bom e faz o bem» (Sal
119/118, 68). O bem é aquilo que suscita, protege e promove a vida, a
fraternidade e a comunhão. Assim a responsabilidade pelo próximo significa
querer e favorecer o bem do outro, desejando que também ele se abra à lógica
do bem; interessar-se pelo irmão quer dizer abrir os olhos às suas
necessidades. A Sagrada Escritura adverte contra o perigo de ter o coração
endurecido por uma espécie de «anestesia espiritual», que nos torna cegos aos
sofrimentos alheios. O evangelista Lucas narra duas parábolas de Jesus, nas
quais são indicados dois exemplos desta situação que se pode criar no
coração do homem. Na parábola do bom Samaritano, o sacerdote e o levita, com
indiferença, «passam ao largo» do homem assaltado e espancado pelos
salteadores (cf. Lc 10, 30-32), e, na do rico avarento, um homem saciado
de bens não se dá conta da condição do pobre Lázaro que morre de fome à
sua porta (cf. Lc 16, 19). Em ambos os casos, deparamo-nos com o
contrário de «prestar atenção», de olhar com amor e compaixão. O que é
que impede este olhar feito de humanidade e de carinho pelo irmão? Com
frequência, é a riqueza material e a saciedade, mas pode ser também o antepor
a tudo os nossos interesses e preocupações próprias. Sempre devemos ser
capazes de «ter misericórdia» por quem sofre; o nosso coração nunca deve
estar tão absorvido pelas nossas coisas e problemas que fique surdo ao brado do
pobre. Diversamente, a humildade de coração e a experiência pessoal do
sofrimento podem, precisamente, revelar-se fonte de um despertar interior para a
compaixão e a empatia: «O justo conhece a causa dos pobres, porém o ímpio
não o compreende» (Prov 29, 7). Deste modo entende-se a
bem-aventurança «dos que choram» (Mt 5, 4), isto é, de quantos são
capazes de sair de si mesmos porque se comoveram com o sofrimento alheio. O
encontro com o outro e a abertura do coração às suas necessidades são
ocasião de salvação e de bem-aventurança.
O facto de «prestar atenção» ao irmão inclui, igualmente, a solicitude
pelo seu bem espiritual. E aqui desejo recordar um aspecto da vida cristã que
me parece esquecido: a correcção fraterna, tendo em vista a salvação
eterna. De forma geral, hoje é-se muito sensível ao tema do cuidado e do
amor que visa o bem físico e material dos outros, mas quase não se fala da
responsabilidade espiritual pelos irmãos. Na Igreja dos primeiros tempos não
era assim, como não o é nas comunidades verdadeiramente maduras na fé, nas
quais se tem a peito não só a saúde corporal do irmão, mas também a da sua
alma tendo em vista o seu destino derradeiro. Lemos na Sagrada Escritura: «Repreende
o sábio e ele te amará. Dá conselhos ao sábio e ele tornar-se-á ainda mais
sábio, ensina o justo e ele aumentará o seu saber» (Prov 9, 8-9). O
próprio Cristo manda repreender o irmão que cometeu um pecado (cf. Mt
18, 15). O verbo usado para exprimir a correcção fraterna – elenchein –
é o mesmo que indica a missão profética, própria dos cristãos, de denunciar
uma geração que se faz condescendente com o mal (cf. Ef 5, 11). A
tradição da Igreja enumera entre as obras espirituais de misericórdia a de «corrigir
os que erram». É importante recuperar esta dimensão do amor cristão. Não
devemos ficar calados diante do mal. Penso aqui na atitude daqueles cristãos
que preferem, por respeito humano ou mera comodidade, adequar-se à mentalidade
comum em vez de alertar os próprios irmãos contra modos de pensar e agir que
contradizem a verdade e não seguem o caminho do bem. Entretanto a advertência
cristã nunca há-de ser animada por espírito de condenação ou censura; é
sempre movida pelo amor e a misericórdia e brota duma verdadeira solicitude
pelo bem do irmão. Diz o apóstolo Paulo: «Se porventura um homem for
surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi essa pessoa com
espírito de mansidão, e tu olha para ti próprio, não estejas também tu a
ser tentado» (Gl 6, 1). Neste nosso mundo impregnado de individualismo,
é necessário redescobrir a importância da correcção fraterna, para
caminharmos juntos para a santidade. É que «sete vezes cai o justo» (Prov
24, 16) – diz a Escritura –, e todos nós somos frágeis e imperfeitos (cf. 1
Jo 1, 8). Por isso, é um grande serviço ajudar, e deixar-se ajudar, a ler
com verdade dentro de si mesmo, para melhorar a própria vida e seguir mais
rectamente o caminho do Senhor. Há sempre necessidade de um olhar que ama e
corrige, que conhece e reconhece, que discerne e perdoa (cf. Lc 22, 61),
como fez, e faz, Deus com cada um de nós.
2. «Uns aos outros»: o dom da reciprocidade.
O facto de sermos o «guarda» dos outros contrasta com uma mentalidade que,
reduzindo a vida unicamente à dimensão terrena, deixa de a considerar na sua
perspectiva escatológica e aceita qualquer opção moral em nome da liberdade
individual. Uma sociedade como a actual pode tornar-se surda quer aos
sofrimentos físicos, quer às exigências espirituais e morais da vida. Não
deve ser assim na comunidade cristã! O apóstolo Paulo convida a procurar o que
«leva à paz e à edificação mútua» (Rm 14, 19), favorecendo o «próximo
no bem, em ordem à construção da comunidade» (Rm 15, 2), sem buscar
«o próprio interesse, mas o do maior número, a fim de que eles sejam salvos»
(1 Cor 10, 33). Esta recíproca correcção e exortação, em espírito
de humildade e de amor, deve fazer parte da vida da comunidade cristã.
Os discípulos do Senhor, unidos a Cristo através da Eucaristia, vivem numa
comunhão que os liga uns aos outros como membros de um só corpo. Isto
significa que o outro me pertence: a sua vida, a sua salvação têm a ver com a
minha vida e a minha salvação. Tocamos aqui um elemento muito profundo da
comunhão: a nossa existência está ligada com a dos outros, quer no bem quer
no mal; tanto o pecado como as obras de amor possuem também uma dimensão
social. Na Igreja, corpo místico de Cristo, verifica-se esta reciprocidade: a
comunidade não cessa de fazer penitência e implorar perdão para os pecados
dos seus filhos, mas alegra-se contínua e jubilosamente também com os
testemunhos de virtude e de amor que nela se manifestam. Que «os membros tenham
a mesma solicitude uns para com os outros» (1 Cor 12, 25) – afirma
São Paulo –, porque somos um e o mesmo corpo. O amor pelos irmãos, do qual
é expressão a esmola – típica prática quaresmal, juntamente com a oração
e o jejum – radica-se nesta pertença comum. Também com a preocupação
concreta pelos mais pobres, pode cada cristão expressar a sua participação no
único corpo que é a Igreja. E é também atenção aos outros na reciprocidade
saber reconhecer o bem que o Senhor faz neles e agradecer com eles pelos
prodígios da graça que Deus, bom e omnipotente, continua a realizar nos seus
filhos. Quando um cristão vislumbra no outro a acção do Espírito Santo, não
pode deixar de se alegrar e dar glória ao Pai celeste (cf. Mt 5, 16).
3. «Para nos estimularmos ao amor e às boas obras»: caminhar juntos
na santidade.
Esta afirmação da Carta aos Hebreus (10, 24) impele-nos a considerar
a vocação universal à santidade como o caminho constante na vida espiritual,
a aspirar aos carismas mais elevados e a um amor cada vez mais alto e fecundo (cf.
1 Cor 12, 31 – 13, 13). A atenção recíproca tem como finalidade
estimular-se, mutuamente, a um amor efectivo sempre maior, «como a luz da
aurora, que cresce até ao romper do dia» (Prov 4, 18), à espera de
viver o dia sem ocaso em Deus. O tempo, que nos é concedido na nossa vida, é
precioso para descobrir e realizar as boas obras, no amor de Deus. Assim a
própria Igreja cresce e se desenvolve para chegar à plena maturidade de Cristo
(cf. Ef 4, 13). É nesta perspectiva dinâmica de crescimento que se
situa a nossa exortação a estimular-nos reciprocamente para chegar à
plenitude do amor e das boas obras.
Infelizmente, está sempre presente a tentação da tibieza, de sufocar o
Espírito, da recusa de «pôr a render os talentos» que nos foram dados para
bem nosso e dos outros (cf. Mt 25, 24-28). Todos recebemos riquezas
espirituais ou materiais úteis para a realização do plano divino, para o bem
da Igreja e para a nossa salvação pessoal (cf. Lc 12, 21; 1 Tm
6, 18). Os mestres espirituais lembram que, na vida de fé, quem não avança,
recua. Queridos irmãos e irmãs, acolhamos o convite, sempre actual, para
tendermos à «medida alta da vida cristã» (João Paulo II, Carta ap. Novo
millennio ineunte, 31). A Igreja, na sua sabedoria, ao reconhecer e
proclamar a bem-aventurança e a santidade de alguns cristãos exemplares, tem
como finalidade também suscitar o desejo de imitar as suas virtudes. São Paulo
exorta: «Adiantai-vos uns aos outros na mútua estima» (Rm 12, 10).
Que todos, à vista de um mundo que exige dos cristãos um renovado
testemunho de amor e fidelidade ao Senhor, sintam a urgência de esforçar-se
por adiantar no amor, no serviço e nas obras boas (cf. Heb 6, 10). Este
apelo ressoa particularmente forte neste tempo santo de preparação para a
Páscoa. Com votos de uma Quaresma santa e fecunda, confio-vos à intercessão
da Bem-aventurada Virgem Maria e, de coração, concedo a todos a Bênção
Apostólica.
Vaticano, 3 de Novembro de 2011
BENEDICTUS PP XVI
[00174-06.01] [Texto original: Italiano]